Quinta-feira, 29 de Abril de 2004
Poema
POEMA (Alberto Caeiro/Pessoa)
O meu olhar é nítido como um girassol.
Tenho o costume de andar pelas estradas
Olhando para a direita e para a esquerda,
E de vez em quando para trás...
E o que vejo a cada momento
É aquilo que nunca antes eu tinha visto,
E eu sei dar por isso muito bem...
Sei ter o pasmo essencial
Que tem uma criança se, ao nascer,
Reparasse que nascera deveras...
Sinto-me nascido a cada momento
Para a eterna novidade do mundo...
Creio no mundo como num malmequer,
Porque o vejo. Mas não penso nele
Porque pensar é não compreender...
O mundo não se faz para pensarmos nele
(Pensar é estar doente dos olhos)
Mas para olharmos para ele e estarmos de acordo...
Eu não tenho filosofia: tenho sentidos...
Se falo na Natureza não é porque saiba o que ela é,
Mas porque a amo, e amo-a por isso,
Porque quem ama nunca sabe o que ama
Nem sabe porque ama, nem o que é amar...
Amar é a eterna inocência,
E a única inocência não pensar...
Quinta-feira, 22 de Abril de 2004
As Cabras
AS CABRAS - Eugénio de Andrade
Por toda a parte onde a terra for pobre e alta, elas aí estão, as cabras - negras, muito femininas nos seus saltos miúdos, de pedra em pedra.
Gosto destas desavergonhadas desde pequeno. Tive uma que me deu meu avô, e ele próprio me ensinou a servir-me, quando tivesse fome, daqueles odres fartos, mornos, onde as mãos se demoravam vagarosas antes da boca se aproximar, para que o leite não se perdesse, pelo pescoço, pelo peito até, o que às vezes acontecia, quem sabe se de propósito, o pensamento na vulvazinha cheirosa.
Chamava-se Maltesa, foi o meu cavalo, e não sei se a minha primeira mulher.
Quarta-feira, 14 de Abril de 2004
Ah, um soneto!
AH, UM SONETO... Álvaro de Campos/Fernando Pessoa
Meu coração é um almirante louco
que abandonou a profissão do mar
e que a vai relembrando pouco a pouco
em casa a passear, a passear...
No movimento (eu mesmo me desloco
nesta cadeira, só de o imaginar)
o mar abandonado fica em foco
nos músculos cansados de parar.
Há saudades nas pernas e nos braços.
Há saudades no cérebro por fora.
Há grandes raivas feitas de cansaços.
Mas - esta é boa! - era do coração
que eu falava... e onde diabo estou eu agora
como almirante em vez de sensação?...
Terça-feira, 13 de Abril de 2004
Odes!
ODES - Ricardo Reis/Fernando Pessoa
Nos altos ramos de árvores frondosas
O vento faz um rumor frio e alto,
Nesta floresta, em este som me perco
E sozinho medito.
Assim no mundo, acima do que sinto,
Um vento faz a vida, e a deixa, e a toma,
E nada tem sentido - nem a alma
Com que penso sozinho.
- - - -
Sim, sei bem
Que nunca serei alguém.
Sei de sobra
Que nunca terei uma obra.
Sei, enfim,
Que nunca saberei de mim.
Sim, mas agora,
Enquanto dura esta hora,
Este luar, estes ramos,
Esta paz em que estamos,
Deixem-me crer
O que nunca poderei ser.
Segunda-feira, 12 de Abril de 2004
Desde o Chão!
DESDE O CHÃO - Eugénio de Andrade
A pele porosa do silêncio
agora que a noite sangra nos pulsos
traz-me o teu rumor de chuva branca.
O verão anda por aí, o cheiro
violento da beladona cega a terra.
Cega também, a boca procura
trabalhos de amor. Encontra apenas
o nó de sombras das palavras.
Palavras... Onde um só grito
bastaria, há a gordura
das palavras. Palavras -
quando apetecem claridades súbitas,
o sumo estreme, a ponta extrema,
do teu corpo, arco, flecha,
corola de água aberta
ao fogo a prumo do meu corpo.
Do chão ao cume das colinas,
eis as areias. Cala-te.
Deita-te. Debaixo dos meus flancos.
A terra toda em cima. Agora arde. Agora.
Domingo, 11 de Abril de 2004
A Forca
A FORCA - Cesário Verde
Já que adorar-me dizes que não podes,
Imperatriz serena, alva e discreta,
Ai, como no teu colo há muita seta
E o teu peito é peito dum Herodes.
Eu antes que encaneçam meus bigodes
Ao meu mister de amar-te hei-de pôr meta,
O coração mo diz - feroz profeta,
Que anões faz dos colossos lá de Rodes.
E a vida depurada no cadinho
Das eróticas dores do alvoroço,
Acabará na forca, num azinho,
Mas o que há-de apertar o meu pescoço
Em lugar de ser corda de bom linho
Será do teu cabelo um menos grosso.
Sexta-feira, 9 de Abril de 2004
Desejos!
Este lugar (Blog) vai servir como pouso das coisas bonitas que as palavras (e imagens) sabem fazer!
DESEJOS - Camilo Pessanha
Se medito no gozo que promete
A sua boca fresca e pequenina
E o seio mergulhado em renda fina
Sob a curva ligeira do corpete;
Desejo, num transporte de gigante,
Estreitá-la de rijo entre meus braços,
Até quase esmagar nestes abraços
A sua carne branca e palpitante;
Como, da Ásia nos bosques tropicais,
Apertam, em espiral auriluzente,
Os músculos hercúleos da serpente
Aos troncos das palmeiras colossais...
E como, ao depois, quando o cansaço
A sepulta na morna letargia,
Dormindo repousa todo o dia,
À sombra da palmeira, o corpo lasso;
Eu quisera também, adormecido,
Dos fantasmas da febre ver o mar,
Mas sempre sob o azul do seu olhar,
Envolto no calor do seu vestido;
Como os ébrios chineses delirantes
Aspiram, já dormindo, o fumo quieto
Que o seu longo cachimbo predilecto
No ambiente espalhava pouco antes...