Quarta-feira, 30 de Junho de 2004
Adamastor
Adamastor no Cabo da Boa EsperançaJá a vista, pouco a pouco, se desterraDaqueles pátrios montes, que ficavam;Ficava o caro Tejo e a fresca serraDe Sintra, e nela os olhos se alongavam.Ficava-nos também na amada terraO coração, que as mágoas lá deixavam.E, já depois que toda se escondeu,Não vimos mais, enfim, que mar e céu.Assim fomos abrindo aqueles mares,Que geração alguma não abriu,As novas Ilhas vendo e os novos aresQue o generoso Henrique descobriu;De Mauritânia os montes e lugares,Terra que Anteu num tempo possuiu,Deixando à mão esquerda, que à direitaNão há certeza doutra, mas suspeita.Passámos a grande ilha da Madeira,Que do muito arvoredo assim se chama;Das que nós povoámos a primeira,Mais célebre por nome que por fama.Mas, nem por ser do mundo a derradeira,Se lhe avantajam quantas Vénus ama;Antes, sendo esta sua, se esqueceraDe Cipro, Gnido, Pafos e Citera.Deixámos de Massília a estéril costa,Onde seu gado os Azenegues pastam,Gente que as frescas águas nunca gostaNem as ervas do campo bem lhe abastam;A terra a nenhum fruto, enfim, disposta,Onde as aves no ventre o ferro gastam,Padecendo de tudo extrema inópia,Que aparta a Barbaria da Etiópia.Passámos o limite aonde chegaO sol, que para o norte os carros guia;Onde jazem os povos a quem negaO filho de Climente a cor do dia.Aqui gentes estranhas lava e regaDo negro Samagá a corrente fria,Onde o Cabo Arsinário o nome perde,Chamando-se dos nossos Cabo Verde. (continua)Luís Vaz de Camões
Domingo, 27 de Junho de 2004
Odes!
Odes de Ricardo ReisSúbdito inútil de astros dominantes,Passageiros como eu, vivo uma vidaQue não quero nem amo,Minha porque sou ela,No esgástulo de ser quem sou, contudo,De em mim pensar me livro, olhando no altoOs astros que dominamSubmissos de os ver brilhar.Vastidão vã que finge de infinito(Como se o infinito se pudesse ver!) -Dá-me ela a liberdade?Como, se ela a não tem?Estás só. Ninguém o sabe. Cala e finge.Mas finge sem fingimento.Nada esperes que em ti já não exista,Cada um consigo é triste.Tens sol se há sol, ramos se ramos buscas,Sorte se a sorte é dada.
Sexta-feira, 25 de Junho de 2004
Poesia e Prosa
Poesia e ProsaO olhar desprende-se, cai de maduro.Não sei que fazer de um olharque sobeja na árvore,que fazer desse ardorque sobra na boca,no chão aguarda subir à nascente.Não sei que destino é o da luz,mas seja qual foré o mesmo do olhar: há neleuma poeira fraterna,uma dor retardada, alguma sombrafremente aindade calhandra assustada.Então sentados quase lado a ladono chão à espera que passe um barco,a luz muito quietano colocomo se fora um gato, o sorrisoantigo, a casaà beira do crespúsculoatenta aos passos nas areias;era outra vez abril,chovia no jardim, já não chovia,um aroma, apenas um aroma,tornava espesso o ar.Uma criança me leva rio acima.Eugénio de Andrade
Segunda-feira, 21 de Junho de 2004
Cantos
CANTOS (última parte)A assentando nos rudes escabelos,Sob os arcos de murta e sobre as relvas,Longamente sonhámos sonhos belos,Sentindo a fresquidão das verdes selvas.Quando ao nascer da aurora, unidos ambosNum amor grande como um mar sem praias,Ouvíamos os meigos ditirambos,Que os rouxinóis teciam nas olaias,E, afastados das aldeias e dos casais,Eu contigo, abraçado como as heras,Escondidos nas ondas dos trigais,Devolvia-te os beijos que me deras;Quando, se havia lama no caminho,Eu te levava ao colo sobre a greda,E o teu corpo nevado como arminhoPesava menos que um papel de seda...talvez já te esquecesses dos poemetos,Revoltos como os bailes do Casino,E daqueles byrónicos sonetosQue eu gravei no teu peito alabastrino.De tudo certamente te esqueceste,Porque tudo no mundo morre e muda,E agora és triste e só como um cipreste,E como a campa jazes fria e muda.Esqueceste sim, meu sonho querido,Que o nosso belo e lúcido passadoFoi um único abraço comprimido,Foi um beijo, por meses, prolongado.E foste sepultar-te, ó serafim,No claustro das Fiéis emparedadas,Escondeste o teu rosto de marfimNo véu negro das freiras resignadas.E eu passo, tão calado como a Morte,Nesta velha cidade tão sombria,Chorando aflitamente a minha sorteE prelibando o cálix da agonia.E, tristíssima Helena, com verdade,Se pudera na terra achar suplícios,Eu também me faria gordo fradeE cobriria a carne de cilícios.Cesário Verde
Domingo, 20 de Junho de 2004
Cantos
CANTOS (seguimento)Quando, à brisa outoniça, como um manto,Os teus cabelos de âmbar, desmanchados,Se prendiam nas folhas dum acanto,Ou nos bicos agrestes dos silvados.E eu ia desprendê-los, como um pagemQue a cauda solevasse aos teus vestidos,e ouvia murmurar à doce aragemUns delírios de amor, entristecidos;Quando eu via, invejoso, mas sem queixas,Pousarem borboletas doudejantesNas tuas formosíssimas madeixas,Daquela cor das messes lourejantes,E no pomar, nós dois, ombro com ombro,Caminhávamos sós e de mãos dadas,Beijando os nossos rostos sem assombro,E colorindo as faces desbotadas;Quando, Helena, bebíamos, curvados,As águas nos ribeiros remansosos ,E, nas sombras, olhando os céus amadosContávamos os astros luminosos.Quando, uma noite, em êxtases caímosAo sentir o chorar dalgumas fontes,E os cânticos das rãs que sobre os limosQuebravam a solidão dos altos montes. (continua)Cesário verde
Sábado, 19 de Junho de 2004
Cantos
CANTOSTalvez já não te lembres, triste Helena,Dos passeios que dávamos sozinhos,À tardinha, naquela terra amena,No tempo da colheita dos bons vinhos.Talvez já não te lembres, pesarosa,Da casinha caiada em que morámos,Nem do adro da ermida silenciosa,Onde nós tantas vezes conversámos.Talvez já te esquecesses, ó bonina,Que viveste só no campo comigo,Que te osculei a boca purpurina,E que fui o teu sol e teu abrigo.Que fugiste comigo da Babel,Mulher como não há nem na Circássia,Que bebemos, nós dois, do mesmo fel,E regámos com prantos uma acácia.Talvez já te não lembres com desgostoDaquelas brancas noites de mistério,Em que a Lua sorria no teu rostoE nas lages campais do cemitério.Talvez já se apagassem as miragens Do tempo em que eu vivia nos teus seios,Quando as aves cantando entre as ramagensO teu nome diziam aos gorjeios. (continua)Cesário Verde
Quinta-feira, 17 de Junho de 2004
Poesia
POESIAMas eu, em cuja alma se reflectemAs forças todas do universo,Em cuja reflexão emotiva e sacudidaMinuto a minuto, emoção a emoção,Coisas antagónicas e absurdas se sucedem -Eu o foco inútil de todas as realidades,Eu o fantasma nascido de todas as sensações,Eu o abstracto, eu o projectado no écran,Eu a mulher legítima e triste do Conjunto,Eu sofro ser eu através disto tudo como ter sede sem ser de água.(Álvaro de Campos)