Sexta-feira, 30 de Julho de 2004
Poesia
OPIÁRIO
(Ao senhor Mário de Sá-Carneiro)
É antes do ópio que minha alma é doente.
Sentir a vida convalesce e estiola
E eu vou buscar ao ópio que consola
Um Oriente ao oriente do Oriente.
Esta vida de bordo há-de matar-me.
São dias só de febre na cabeça
E, por mais que procure até que adoeça,
Já não encontro a mola pra adaptar-me.
E por mecanismo de desastres,
Uma engrenagem com volantes falsos,
Que passo entre visões de cadafalsos
Num jardim onde há flores no ar, sem hastes.
Ao toque adormecido da morfina
Perco-me em transparências latejantes
E numa noite cheia de brilhantes
Ergue-se a Lua como a minha Sina.
Eu, que fui sempre um mau estudante, agora
Não faço mais que ver o navio ir
Pelo canal de Suez a conduzir
A minha vida, cânfora na aurora.
Perdi os dias que já aproveitara.
Trabalhei para ter só o cansaço
Que é hoje em mim uma espécie de braço
Que ao meu pescoço me sufoca e ampara.
Por isso eu tomo ópio. É um remédio.
Sou um convalescente do Momento.
Moro no rés-do-chão do pensamento
E ver passar a vida faz-me tédio.
Fumo. Canso. Ah uma terra aonde, enfim,
Muito a leste não fosse o oeste já!
Pra que fui visitar a Índia que há
Se não há Índia senão a alma em mim?
Levo o dia a fumar, a beber coisas,
Drogas americanas que entontecem,
E eu já tão bêbado sem nada! Dessem
Mehor cérebro aos meus nervos como rosas.
Escrevo estas linhas. Parece impossível!
Que mesmo ao ter talento eu mal o sinta!
O facto é que esta vida é uma quinta
Onde se aborrece uma alma sensível.
Álvaro de Campos
Segunda-feira, 26 de Julho de 2004
Poesia e Prosa
POESIA/PROSA
Regressar ao corpo, entrar nele
sem receio da insurreição da carne.
Nenhuma boca é fria,
mesmo quando atravessou
o inverno. Uma boca é imortal
sobre outra boca: diamante
aceso, estrela aberta
quando a luz irrompe, invade
ombros, peitos, coxas, nádegas, falos.
Despertos, puros no seu pulsar,
aí os tens: esplendorosos,
duros.
Tocar-te a pele,
o pulso aberto
ao gume do olhar.
Que seja esse
o chão, o sopro
do primeiro dia.
Rosa inflamável,
boca do ar.
Aqui me tens, conivente com o sol
neste incêndio do corpo até ao fim:
as mãos tão ávidas no seu voo,
a boca que se esquece no teu peito
de envelhecer e sabe ainda recusar.
Eugénio de Andrade
Domingo, 11 de Julho de 2004
Cabelos
CABELOS
Ó vagas de cabelo esparsas longamente,
Que sois o vasto espelho onde eu me vou mirar,
E tendes o cristal dum lago refulgente
E a rude escuridão dum largo e negro mar.
Cabelos torrenciais daquela que me enleva,
Deixai-me mergulhar as mãos e os braços nus
No báratro febril da vossa grande treva,
Que tem cintilações e meigos céus de luz.
Deixai-me navegar, morosamente, a remos,
Quando ele estiver brando e livre de tufões,
E, ao plácido luar, ó vagas, marulhemos
E enchámos de harmonia as amplas solidões.
E ó mágica mulher, ó minha Inigualável,
Que tem o imenso bem de ter cabelos tais,
E os pisas desdenhosa, altiva, imperturbável,
Entre o rumor banal dos hinos triunfais.
Consente que eu aspire esse perfume raro,
Que axalas da cabeça erguida com fulgor,
Perfume que estonteia um milionário avaro
E faz morrer de febre um louco sonhador.
Eu sei que tu possuis balsâmicos desejos,
E vais na direcção constante do querer,
Mas ouço, ao ver-te andar, meló dicos harpejos,
Que fazem mansamente amar e enlanguescer.
Ó manto de veludo esplêndido e sombrio,
Na vossa vastidão posso talvez morrer!
Mas vinde-me aquecer, que eu tenho muto frio
E quero asfixiar-me em ondas de prazer.
Sexta-feira, 9 de Julho de 2004
Arte de Navegar
ARTE DE NAVEGARVê como o verãosubitamentese faz água no teu peito,e a noite se faz barco,e a minha mão marinheiro.Eugénio de Andrade
Quarta-feira, 7 de Julho de 2004
Poesia
POESIAO que nós vemos das coisas são as coisas.Por que veríamos nós uma coisa se houvesse outra?Por que é que ver e ouvir seria iludirmo-nosSe ver e ouvir são ver e ouvir?O essencial é saber ver,Saber ver sem estar a pensar,Saber ver quando se vê,E nem pensar quando se vêNem ver quando se pensa.Mas isso (tristes de nós que trazemos a alma vestida!),isso exige um estudo profundo,Uma aprendizagem de desaprenderE uma sequestração na liberdade daquele conventoDe que os poetas dizem que as estrelas são as freiras eternasE as flores as penitentes convictas de um só dia,Mas onde afinal as estrelas não são senão estrelasNem as flores senão flores,Sendo por isso que lhes chamamos estrelas e flores.Não sei o que é a Natureza: canto-a.Vivo no cimo dum outeiroNuma casa caiada e sozinha,E essa é a minha definição.Alberto Caeiro
Sábado, 3 de Julho de 2004
Corpo Habitado
CORPO HABITADOCorpo num horizonte de água,corpo abertoà lenta embriaguez dos dedos,corpo defendidopelo fulgor das maçãs,rendido de colina em colina,corpo amorosamente humedecidopelo sol dócil da língua.Corpo com gosto a erva rasade secreto jardim,corpo onde entro em casa,corpo onde me deitopara sugar o silêncio,ouviro rumor das espigas,respirara doçura escuríssima das silvas.Corpo de mil bocas,e todas fulvas de alegrias,todas para sorver,todas para morder até que um gritoirrompa das entranhas,e suba às torres,e suplique um punhal.Corpo para entregar às lágrimas.Corpo para morrer.Corpo para beber até ao fim -meu oceano brevee branco,minha secreta embarcação,meu vento favorável,minha vária, sempre incertanavegação.Eugénio de Andrade
Quinta-feira, 1 de Julho de 2004
Adamastor II
Adamastor no Cabo da Boa EsperançaPassadas tendo já as Canárias ilhas,Que tiveram por nome Fortunadas,Entrámos, navegando, pelas filhasDo velho Hispério, Hespéridas chamadas;Terras por onde novas maravilhasAndaram vendo já nossas armadas.Ali tomámos porto com bom vento,Por tomarmos da terra mantimento.Àquela ilha aportámos que tomouO nome do guerreiro Santiago,Santo que os espanhóis tanto ajudouA fazerem nos mouros bravo estrago.Daqui, tanto que Bóreas nos ventou,Tornámos a cortar o imenso lagoDo salgado Oceano, e assim deixámosA terra onde o refresco doce achámos.Por aqui rodeando a larga parteDe África, que ficava no Oriente:A província Jalofo, que repartePor diversas nações a negra gente;A mui grande Mandinga , por cuja arteLogramos o metal rico e luzente,Que no curvo Gambeia as águas bebe,As quais o largo Atlântico recebe;As Dórcadas passámos, povoadasDas irmãs que outro tempo ali viviam,Que, de vista total sendo privadas,Todas as três dum só olho se serviam.Tu só, tu, cujas tranças encrespadasNeptuno lá nas águas acendiam,Tornada já de todas a mais feia,De víboras encheste a ardente areia.Sempre, enfim, para o Austro a aguda proa,No grandíssimo golfão nos metemos,Deixando a serra aspérrima Leoa,Co'o Cabo a quem das Palmas nome demos.O grande rio, onde batendo soaO mar nas praias notas, que ali temos,Ficou, co'a Ilha ilustre, que tomouO nome dum que o lado a Deus tocou.Ali o mui grande reino de Congo,Por nós convertido à fé de Cristo,Por onde o Zaire passa, claro e longo,Rio pelos antigos nunca visto.Por este largo mar, enfim, me alongoDo conhecido pólo de Calisto,tendo o término ardente já passadoOnde o meio do Mundo é limitado.Luís Vas de Camões