Quinta-feira, 30 de Setembro de 2004
Poesia
Num castelo deserto e solitário,
Toda de preto, às horas silenciosas,
Envolve-se nas pregas dum sudário
E chora como as grandes criminosas.
Pudesse eu ser o lenço de Bruxelas
Em que ela esconde as lágrimas singelas.
Ou domina, a rezar, no pavimento
Da capela onde outrora se ouvia missa,
A música dulcíssima do vento
E o sussurro do mar, que se espreguiça.
Pudesse eu ser o mar e os meus desejos
Eram ir borrifar-lhe os pés, com beijos.
E os abutres e os corvos fazem giros
De roda das ameias e dos pegos,
E nas salas ressoam uns suspiros
Dolentes como as súplicas dos cegos.
Fosse eu aquelas aves de pilhagem
E cercara-lhe a fronte, em homenagem.
E assim passa, chorando, as noites belas,
Sonhando uns tristes sonhos doloridos,
E a reflectir nas góticas janelas
As estrelas dos céus desconhecidos.
Pudesse eu ir sonhar também contigo
E ter as mesmas pedras no jazigo.
Uníssemos, nós dois, as nossas covas,
Ó doce castelã das minhas trovas!
Cesário Verde
Segunda-feira, 27 de Setembro de 2004
Poesia e Prosa
Coroai-me de rosas,
Coroai-me em verdade
DE ROSAS -
Rosas que se apagam
Em fronte a apagar-se
TÃO CEDO!
Coroai-me de rosas
E de folhas breves.
E BASTA...
Ricardo Reis
Quinta-feira, 23 de Setembro de 2004
Véspera da Água
Tudo lhe doía
de tanto que lhes queria:
a terra
e o seu muro de tristeza,
um rumor adolescente,
não de vespas
mas de tílias,
a respiração do trigo,
o fogo reunido na cintura,
um beijo aberto na sombra,
tudo lhe doía:
a frágil e doce e mansa
masculina água dos olhos,
o carmim entornado nos espelhos,
os lábios,
instrumentos da alegria
de tanto que lhes queria:
os dulcíssimos melancólicos
magníficos animais amedrontados,
um verão difícil
em altos leitos de areia,
a haste delicada de um suspiro,
o comércio dos dedos em ruína,
a harpa inacabada da ternura,
um pulso claramente pensativo,
lhe doía:
na véspera de ser homem,
na véspera de ser água,
o tempo ardido,
rouxinol estrangulado,
meu amor: amora branca,
o rio
inclinado
para as aves,
a nudez partilhada, os jogos matinais,
ou se preferem: nupciais,
o silêncio torrencial,
a reverência dos mastros,
no intervalo das espadas
uma criança corre
corre na colina
atrás do vento,
de tanto que lhes queria,
tudo, tudo lhe doía.
Eugénio de Andrade
Quinta-feira, 16 de Setembro de 2004
Poesia e Prosa
O amor é uma companhia.
Já não sei andar só pelos caminhos,
Porque já não posso andar só.
Um pensamento visível faz-me andar mais depressa
E ver menos, e ao mesmo tempo gostar bem de ir vendo tudo.
Mesmo a ausência dela é uma coisa que está comigo.
E eu gosto tanto dela que não sei como a desejar.
Se a não vejo, imagino-a e sou forte como as árvores altas.
Mas se a vejo tremo, não sei o que é feito do que sinto na ausência
dela.
Todo eu sou qualquer força que me abandona.
Toda a realidade olha para mim como um girassol com a cara dela no
meio.
Alberto Caeiro
Quinta-feira, 9 de Setembro de 2004
Cadências Tristes
CADÊNCIAS TRISTES
(A João de Deus)
Ó bom João de Deus, ó lírico imortal,
Eu gosto de te ouvir falar timidamente
Num beijo, num olhar, num plácido ideal;
Eu gosto de te ver contemplativo e crente,
Ó pensador suave, ó lírico imortal!
E fico descansado, à noite, quando cismo
Que tentam proscrever a sensibilidade.
E querem denegrir o cândido lirismo;
Porque o teu rosto exprime uma serenidade,
Que vem tranquilizar-me, à noite, quando cismo!
O enleio, a simpatia e toda a comoção
Tu mostras no sorriso ascético e perfeito;
E tens o edificante e doce amor cristão,
Num trono de bondade, a iluminar-te o peito,
Que é toda a melodia e toda a comoção!
Poeta da mulher! Atende, escuta, pensa,
Já que és o nosso irmão, já que és o nosso mestre,
Que ela, ou doente sempre ou na convalescença,
É como a flor de estufa em solidão silvestre,
Ao tempo abandonada! Atende, escuta, pensa.
E, ó meigo visionário, ó meu desvaneador,
O sentimentalismo há-de mudar de fases;
Mas só quando morrer a derradeira flor
É que não hão-de ler-se os versos que tu fazes,
Ó bom João de Deus, ó meu desvaneador!
Cesário Verde
Quarta-feira, 1 de Setembro de 2004
Poesia
EM LOUVOR DO FOGO
Um dia chega
de extrema doçura:
tudo arde.
Arde a luz
nos vidros da ternura.
As aves,
no branco
labirinto da cal.
As palavras ardem,
a púrpura das aves.
O vento,
onde tenho casa
à beira do outono.
O limoeiro, as colinas,
tudo arde
na extrema e lenta
doçura da tarde.
Vê como o verão
subitamente
se faz água no teu peito,
e a noite se faz barco,
e a minha mão marinheiro.
Eugénio de Andrade