Terça-feira, 26 de Outubro de 2004
Adeus
Já gastámos as palavras pela rua, meu amor,
e o que nos ficou não chega
para afastar o frio de quatro paredes.
Gastámos tudo menos o silêncio.
Gastámos os olhos com o sal das lágrimas,
gastámos as mãos à força de as apertarmos,
gastámos o relógio e as pedras das esquinas
em esperas inúteis.
Meto as mãos nas algibeiras e não encontro nada.
Antigamente tínhamos tanto para dar um ao outro;
era como se todas as coisas fossem minhas:
quanto mais te dava mais tinha para te dar.
Às vezes tu dizias: os teus olhos são peixes verdes.
E eu acreditava.
Acreditava,
porque ao teu lado
todas as coisas eram possíveis.
Mas isso era no tempo dos segredos,
era no tempo em que o teu corpo era um aquário,
era no tempo em que os meus olhos
eram realmente peixes verdes.
Hoje são apenas os meus olhos.
É pouco, mas é verdade,
uns olhos como todos os outros.
Já gastámos as palavras.
Quando agora digo: MEU AMOR,
já se não passa absolutamente nada.
E no entanto, antes das palavras gastas,
tenho a certeza
que todas as coisas estremeciam
só de murmurar o teu nome
no silêncio do meu coração.
Não temos já nada para dar.
Dentro de ti
não há nada que me peça água.
O passado é inútil como um trapo.
E já te disse: as palavras estão gastas.
Adeus...
Quarta-feira, 20 de Outubro de 2004
Poesia
Depus a máscara e vi-me ao espelho.
Era a criança de há quantos anos.
Não tinha mudado nada...
É essa a vantagem de saber tirar a máscara.
É-se sempre a criança,
O passado que foi
A criança.
Depuz a máscara, e tornei a pô-la.
Assim é melhor,
Assim sem a máscara.
E volto à personalidade como a um térrminus de linha.
Álvaro de Campos
Terça-feira, 12 de Outubro de 2004
Odes!
Do que quero renego, se o querê-lo
Me pesa na vontade. Nada que haja
Vale que lhe concedamos
Uma atenção que doa.
Meu balde exponho à chuva, por ter água.
Minha vontade, assim, ao mundo exponho,
Recebo o que me é dado,
E o que falta não quero.
O que me é dado quero,
Depois de dado, grato.
Nem quero mais que o dado,
Ou que o tido desejo.
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Sim, sei bem
Que nunca serei alguém.
Sei de sobra
Que nunca terei uma obra.
Sei, enfim,
Que nunca saberei de mim.
Sim,mas agora,
Enquanto dura esta hora,
Este luar, estes ramos,
Esta paz em que estamos,
Deixem-me crer,
O que nunca poderei ser.
Ricardo Reis
Quinta-feira, 7 de Outubro de 2004
Poesia
PÚRPURA SECRETA
É na treva um fogo breve.
Um fogo doce de palha,
húmido,
quase animal.
Uma concha suavemente
trabalhada
pelas abelhas da sombra.
Insegura flor abrindo.
Quase boca, quase língua,
agressiva, transviada.
Aglutinada
púrpura secreta,
clamando
por luz violenta.
Um punhal extenuado
de ferir
lábio a lábio.
Explosão lenta.
Eugénio de Andrade
Segunda-feira, 4 de Outubro de 2004
Sonho meu...
Sonhei contigo pousando teu sorriso,
em meus lábios.
Vinhas das sombras dos rochedos,
molhados pela espuma do mar,
onde tantos beijos trocamos.
Teus cabelos longos e ondulados,
refrescavam meu corpo dourado,
do sol por ti tapado.
Foram as tuas mãos, ou sombra,
que em mim se deitou?
E que meu corpo despertou,
Lascivo e excitado?
E terá sido a música do toque dos teus lábios,
que me levou, em passeio, pelas bordas das ondas...
que meu sossego inquietou,
na dança dos abraços... rodopiando?
Se sonho estou bem,
Se não sonho bem estou, contigo ó miragem!
És feita de quê sombra?
Areia, seixos, luz... ou de lembranças?
Deixa-me estar então...
Quero continuar a lembrar-te assim...
Refrescante em mim!...
Carlos Reis