Segunda-feira, 29 de Novembro de 2004
Digo-te Adeus
Como se houvesse uma tempestade
escurecendo os teus cabelos
ou, se preferes, a minha boca nos teus olhos,
carregada de flor e dos teus dedos;
como se houvesse uma criança cega
aos tropeções dentro de ti,
eu falei em neve, e tu calavas
a voz onde contigo me perdi.
Como se a noite viesse e te levasse,
eu era só fome o que sentia;
digo-te adeus, como se não voltasse
ao país onde o teu corpo principia.
Como se houvesse nuvens sobre nuvens,
a sobre as nuvens mar perfeito
ou, se preferes, a tua boca clara
singrando largamente no meu peito.
Eugénio de Andrade
Sexta-feira, 26 de Novembro de 2004
A tua Imagem
Lembro-me da lua peneirenta e "gorda" de luz,
daquele dia em que me assustaste
quando surgiste de repente por trás de mim;
vinhas frenética, trémula, gesticulando para afastar o frio.
Vieste-me aquecer de horas de espera,
gelado, num instante aqueci com teus braços à volta do pescoço,
qual cachecol de braseiro me pareceu...
Teus risos e gritos entoaram sons
que até o mar se calou pra te ouvir!
Destemidos, corremos pela areia como num céu qualquer,
subimos ao nosso rochedo e enfiamo-nos na manta que trouxeste.
Ficamos olhando a lua "gorda" de luz,
apontando as estrelas com nosso olhar reluzente:
como finos raios cristalinos de luz...
e os teus beijos fizeram-me esquecer o frio.
Lambras-te das promessas que jurámos com nossos olhos?
Lembras-te dos planos que fizemos, silenciosamente,
enquanto nossos beijos falavam?
Lembras-te, de mãos dadas, dos nossos corpos coladinhos um ao outro,
dos segredos, em sussurros, que nossos dedos partilhávam?
Nem a voz alta do mar,
nem a luz fria da lua que nos gozava,
nos impediu que nos entregássemos...
Envoltos de gritos de prazer... e revolta também...
Será que te lembras ainda,
de como a luz da lua afouxou (para mim chorou),
quando de manhãzinha nos despedimos?
... e sorrateiramente lá foste pra casa, tal como saíste...
Hoje a lua está "gorda" de luz novamente,
e está frio também...
E eu lembro-me de ti!!!
Carlos Reis
Terça-feira, 23 de Novembro de 2004
Poesia
Pensar em Deus é desobedecer a Deus,
Porque Deus quis que o não conhecêssemos,
Por isso se nos não mostrou...
Sejamos simples e calmos,
Como os regatos e as árvores,
E Deus amar-nos-á fazendo de nós
Belos como as árvores e regatos,
E dar-nos-á verdor na sua primevera,
E um rio aonde ir ter quando acabemos!...
Alberto Caeiro
Quinta-feira, 18 de Novembro de 2004
Poesia
Deixa que seja uma criança
a inclinar a tarde.
Dizem que é verão: não acredites.
O verão tem os pés iluminados pela lua,
o verão tem os nomes todos do mar,
não é o deserto
da cama aberta ao frio,
o prazer imitando a neve.
O que se vê daqui não é a dança
da claridade com o trigo,
o rio onde os cavalos bebem
a tarde a chegar ao fim.
Deixa que seja uma criança....
Eugénio de Andrade
Sábado, 13 de Novembro de 2004
Poesia
Lembras-te do sábado passado,
Do passio que demos, devagar,
Entre um saudoso gás amarelado
E as carícias leitosas do luar?
Bem me lembro das altas ruazinhas,
Qu ambos nós percorremos de mãos dadas:
Às janelas palravam as vizinhas,
Tinham lívidas luzes as fachadas.
Nós saíramos próximos ao sol-posto,
Mas seguíamos cheios de demoras;
Não me esqueceu ainda o meu desgosto
Nem o sino rachado que deu horas.
Eu sinto ainda a flor da tua pele,
Tua luva, teu véu, o que tu és!
Não sei que tentação é que te impele
Os pequeninos e cansados pés.
E assim ao meu capricho abandonada,
Errámos por travessas, por vielas,
E passámos por pé duma tapada
E um palácio real com sentinelas.
Mas a noite dormente e esbranquiçada
Em uma esteira lúcida de amor;
Ó jovial Senhora perfumada,
Ó terrível criança! Que esplendor!
Cesário Verde
Terça-feira, 9 de Novembro de 2004
Poesia
Não sei se é amor que tens, ou amor que finges,
O que me dás. Dás-mo. Tanto me basta.
Já que o não sou por tempo,
Seja eu jovem por erro.
Pouco os deuses nos dão, e o pouco é falso.
Porém, se o dão, falso que seja, a dádiva
É verdadeira. Aceito,
Cerro olhos: é bastante.
Que mais quero?
Ricardo Reis
Terça-feira, 2 de Novembro de 2004
Passeando em...
Eram tantas as sombras que nem me atrevi olhá-las,
limitei-me a passar a mão pela mesa em que lanchávamos,
e as lembranças brotaram, e meus olhos humedeceram.
Os ruídos do mar continuam lá,
pareceu-me que em segredo... sussurrando,
falaram-me de ti, do teu perfume, do teu riso.
Passaste por aqui à dias, passeando, de olhar vivo
Indagando...
Olhei para o chão, procurando as marcas do teu passar,
olhei o mar, na esperança de respostas,
de cabeça erguida cheirei o ar, o teu perfume,
e na minha cabeça ele estava lá... tu não...
E as sombras são tantas, continuam lá!
E não me atrevo olhá-las...
Posso ver-te e assustar-me...
Estender as mãos e não tocar-te,
passar os dedos pelo teu cabelo ondulado e molhado,
fazer beicinho para te beijar, e nada sentir,
dar um passo em frente para te abraçar,
E ver-me só!
Só com as sombras de nós,
que continuam lá,
e não me atrevo olhá-las!...
Carlos Reis