Quinta-feira, 27 de Janeiro de 2005
De Manhã
Muito gosto eu na janela, ver o raiar do sol pela manhã,
as pinceladas multicoloridas são um dançar eterno,
luminosos corpos e figuras se criam e agigantam,
aos meus olhos pasmados de luz e cor.
As gaivotas em grupo dançam na tela do céu,
em desenhos síncrones de alegria,
são aviões de coração e alma que gozam no ar,
em sinfonias de silêncio... ou de cantares de namoros escolhidos.
As pombas aparecem desconfiadas,
olham-me na dúvida: há ou não comida?
Faço aparecer nas minhas mãos bocados de pão que lanço no ar,
e as acrobatas se saciam no chão, com seu andar autómato.
Cheiro divinamente o aroma do café do vizinho,
chupando cigarro e sorrisos nos olhos,
olho o relógio... é a penitência depois do gozo do amanhecer,
não tenho dúvidas, tá na hora de me pôr a mexer!
Mas antes de me ir, lanço último olhar aos telhados coloridos,
ao céu pintado por mim... sou eu que o vejo assim!
E sei que dia vai ser bonito,
tal como os desenhos das gaivotas à minha frente!
E os violinos de bem-estar que até agora me acompanharam,
vou deixá-los à janela,
amanhã pego neles e bom som me vão dar novamente,
exactamente como o cantar dos pássaros,
e o cheiro divino a café do vizinho!...
Carlos Reis
Quarta-feira, 26 de Janeiro de 2005
Poesia
Milady, é perigoso contemplá-la,
Quando passa aromática e normal,
Com seu tipo tão nobre e tão de sala,
Com seus gestos de neve e de metal.
Em si tudo me atrai como um tesoiro:
O seu ar pensativo e senhoril,
A sua voz que tem um timbre de oiro
E o seu nevado e lúcido perfil!
Ah! Como me estonteia e me fascina...
E é, na graça distinta do seu porte,
Como a moda supérflua e feminna,
E tão alta e serena como a morte!...
O seu olhar possui, num jogo ardente,
Um arcanjo e um demónio a iluminá-lo;
Como um florete, fere agudamente,
E afaga como o pêlo dum regalo!
Cesário Verde
Terça-feira, 25 de Janeiro de 2005
Ternura
Sabia que vinha chuva,
e frio também.
Olhei ao meu redor
procurando refúgio...
Encontrei-o debaixo das saias dela,
Estava quente, senti-me bem e,
adormeci!...
Carlos Reis
Quinta-feira, 20 de Janeiro de 2005
Eugénio de Andrade
Este jovem fez ontem 82 anos, parabéns Eugénio, ou se quiserem Zé Fontinhas seu nome próprio.
Venha de lá esses ossos para te dar um grande abração e o meu muito obrigado por teres existido.
Desde há muito que te leio jovem e sabes que mais... não me canso de saborear as tuas palavras.
Vê lá se continuas por cá ainda uns tempões... a malta que gosta de ti AGRADECE IMENSO!!!
OUTRO MADRIGAL
A mão
que levei à boca
interminavelmente fresca
é outra vez a casa
onde a palavra
acaba de nascer
e o verão.
Eugénio de Andrade
Quarta-feira, 19 de Janeiro de 2005
Resgate
Foi com o teu olhar intenso
que aprendi a deixar de ter medo das cobras.
A tua sedução é enebriante, encantatória até,
mas a instável leveza da tua conduta,
a atracção que me propões, do recuo e avanço,
bela sombra de verão, só atrapalha nossos passos...
Pudera eu, ao teu ouvido, dizer-te dos riscos
do caminho que pisamos,
não me ouves por mais sinais que te dê.
Andas meia perdida na solicitude das ondas
das vozes ocas que nos rodeiam.
Temo por ti querida sombra de verão,
ainda não percebeste que sou o teu sol?
O reino dos mimos e carinhos que precisas?
Vou-me afastar, preciso de respirar sem a tua presença doce,
mas inquietante e atrofiada,
preciso sentir-me novamente EU... e não o teu sorriso de conveniência!
Um dia, em qualquer altura, quando quiseres ser realmente feliz,
manda-me recado pela primeira borboleta que encontres,
ela saberá onde me encontrar.
Eu irei, porque te quero muito, iluminar e aquecer,
teu corpo, teu ser, linda sombra de verão!
Carlos Reis
Sexta-feira, 14 de Janeiro de 2005
Poesia
Acordo de noite subitamente,
E o meu relógio ocupa a noite toda.
Não sinto a Natureza lá fora.
O meu quarto é uma coisa escura com paredes vagamente brancas.
Lá fora há um sossego como se nada existisse.
Só o relógio prossegue o seu ruído.
E esta pequena coisa de engrenagens que está em cima da minha mesa
Abafa toda a existência da terra e do céu...
Quase que me perco a pensar o que isto significa,
Mas estaco, e sinto-me sorrir na noite com os cantos da boca,
Porque a única coisa que o meu relógio simboliza ou significa
Enchendo com a sua pequenez a noite enorme,
É a curiosa sensação de encher a noite enorme
Com a sua pequenez...
Alberto Caeiro
Quarta-feira, 12 de Janeiro de 2005
Sonho meu...
Garanto que foi ontem, no tempo,
que no cimo de uns montes virados a norte,
lufadas de ar quente me tocaram,
deixando-me tonto, embriegado, até paralisado!...
Foram ondas de mãos robustaz,
que meu corpo todo apalparam, para me perceberem,
Senti-me como os feiticeiros tomados pelo "peyote",
Se abrisse os braços, voaria por certo.
Estive perto do precipício...
Foram as vozes das árvores que me alertaram,
(recua, recua... dá uns passos para trás)
Foi indistinto o olhar dos vapores da cordilheira,
quando vejo, o meu corpo, bem abaixo do meu olhar,
vacilante na ponta da ravina.
-Como vim aqui parar? O que estou aqui a fazer?
Falo sem voz, sinto-me suado, muito molhado!
Eu só queria subir à montanha, mais nada.
-Acho que me perdi, tenho de recuar no caminho,
no tempo!...
Ofegante, trémulo... acordei finalmente!...
Carlos Reis