Sexta-feira, 30 de Maio de 2008
Subidos da Terra

Os miúdos das ruas, em quaisquer ruas, quantas vezes rotos e sujos, têm sempre bondades e brilhos nos olhos que a inocência lhes dá mesmo quando a barriga grita de fome. Conheço alguns, são guerreiros do tempo, nas suas intrépidas e irrequietas brincadeiras, parece-me
ilusão minha claro
que é nas brincadeiras incessantes que se alimentam da falta de comida e afectos que por vezes lhes falta em casa, à mesa. São capazes de estar o dia inteiro a brincar, endiabrados, e alimentam-se da água dos chafarizes e torneiras públicas, e vão comendo de vez em quando aquilo que os outros amiguinhos lhes dão, mas chegando a noite o brilho daqueles olhitos desaparecem
uns vão para casa e sabem o que lhes espera, outros ficam sentados pelos passeios e portadas encostados à espera, de olhos baços
e não é pela falta da luz do sol
é pelo
é por algum desassossego de terem de recolher a casa
quando chegar o momento vão, e vão e vai com certeza haver alguma comida e afectos, algumas vezes melhor outras nem por isso, mas comida e alguns afagos à noite há sempre
e estes pequenos anjos sem asas parecem mais tristes que contentes
A sorte deles é que os sonhos não desaparecem tão facilmente
nem os sonhos nem as asas
mesmo com a barriga meio vazia!Subido da terra; entranhas que me conceberam,De olhos espelhados e braços erguidos,Amaino fogos e águas tormentosas de outros pesadelos,Decidido em passos ternos vou acalmar meus sentidos
Vou tecer teias de brancura nos pensamentos bolorentos,Vou quebrar com elos antigos e emanar vibrações reluzentes!...Vou apanhar todos os sorrisos do ar, que me chegam,Aconchegá-los no calor da palma da minha mão,E contar-lhes histórias de sóis e luas que se namoram...Vou induzi-los e incutir-lhes a passearem-se pelos fios de teias livres,Em ruas, avenidas e vielas de recordações de êxtases já vividos, e por viver,Vou ensinar-lhes a sacudir o pó seco que se acumula nos olhos,Vou ordenar-lhes em sorrisos
que abram as asas e desprendam-se,Tudo nos pertence
por favor não percam o caminho dos sonhos
Voem, voem por aí...E aprendam com o namoro dos sóis e das luas e das estrelas!...Carlos Reis(Imagem: Web)
Quinta-feira, 15 de Maio de 2008
Pintar o Dia

Pela chuva da manhã, hoje fresca e mansa, desenhei pensares nas cores da água, planos de passeio pelos montes e montanhas
hoje tinha de ser!Foi fácil pegar na mochila e enfiar-lhe aquelas coisinhas mínimas e, no galope do carro, partir sorrindo sem tempo a me controlar.Com alguns sons bons dos U2, Cocteau Twins, Doors, Floyd e outros, a estrada era a minha passerelle para os altos verdes que me esperavam.Deixar o cavalo de rodas cá em baixo, no seu sítio, e pegar na mochila e subir o monte foi rápido e entusiasmante
em breve já respirava mais forte e solto sentindo as ondas do ar fresco e molhado e livre que me inundavam o peito e rosto
e lá fui caminhando e subindo calcando a terra com seu cheiro
cheiro muito próprio que não consigo descrever por palavras
acho que não há palavras que descrevam verdadeiramente o cheiro da terra
a terra molhada que calcorreava e enlameava-me as botas.E a chuvinha miudinha e brincalhona lá continuava a fazer-me companhia e ao contrário de me chatear só me incentivava mais o gozo da subida.Lá no alto, no cimo de um dos montes da montanha, bem molhado mas satisfeito, olhei à minha volta e o encanto acontece
os cenários são múltiplos
os espaços abertos no horizonte são pinturas naturais e cuidadas com o belo das mãos invisíveis do tempo
as árvores já bem vestidas e vaidosas com braços longos de verdes e flores pareciam fazer-me vénias por me verem
a neblina dispersa naqueles cumes maciços entre os montes da montanha pareciam véus de noivas estelares no universo dali.Cheguei-me para a ponta do monte e deixei cair o meu olhar no vazio, e estremeci
a sensação que me pegou o corpo foi de estrangulamento
em simultâneo percebi a pequenez e grandeza do meu ser
e o céu continuava tão perto.Falei ao vento, lembro-me, e a minha voz foi-se velozmente no rodopiar das correntes do ar irrequieto
e às aves que por ali passeavam pedi-lhes, mudamente, que me mostrassem com o seu olhar aquilo que não me atrevia espreitar
as escadarias íngremes e escarpadas do outro lado da montanha subida do chão, enorme e imponente, que o cimo o meu olhar não alcançava
e das correntes do rio serpenteando lá em baixo como berço de mãos seduzidas aos beijos frescos da água entre os dedos.Encostei-me a uma parede de pedras para me abrigar e equilibrar, e no som da chuva e vento pareceu-me ouvir cantares de versos
poetizando para mim
Sei de uma voz que me canta melodias campestres,Ao amanhecer,Sons de folhas ritmadas pelo vento, brincando...Sons de asas de pássaros estonteantes, esvoaçando por aí
Sons de águas límpidas em margens de lagos, serpenteando...Sons dos sons dos meus passos pelas terras, deambulando...Sei de nuvens matizadas de verdes, azuis, encarnadas, me observando,Que me estendem mãos de figuras transparentes, me acenando,Que pousam e envolvem meu rosto alegremente estafado.Sei de um rosto de menina esculpido na pedra,Onde me sento assobiando canções que desconheço,Contemplando com o corpo sensações etéreas que abraço,Nas folhas que bailam na brisa, na música dos pássaros, no embalo das águas,Na sublime orquestra que me toca e arrepia a pele...Carlos Reis(Imagem:Web)